Certa vez, Freud afirmou que “o homem não é o que ele pensa ser”. Tal afirmação cria corpo quando o pai a psicanálise escreve um texto intitulado “Uma dificuldade na Psicanálise”, onde ele traz à tona o que ele denomina como as três doenças narcísicas da humanidade, ou ainda, nas palavras de Slavoj Zizek, “as três humilhações sofridas pelo homem”.
A primeira, diz respeito a Nicolau Copérnico, que no Séc. XVI demonstrou que a Terra gira em torno do Sol, privando o ser humano da idéia de que éramos o centro do universo. Embora exista atualmente uma vertente alienada, que afirma que a terra é plana, não passa de um resquício psíquico relacionado a egos arraigados que não aceitam sua inferioridade frente ao universo.
A segunda, diz respeito a Charles Darwin, quando demonstrou que emergimos da evolução cega e nos tomou nosso lugar de honra frente aos seres vivos, gerando grande revolta por parte de quem acreditava e acredita no criacionismo divino.
A terceira, diz respeito ao próprio Freud, quando descobriu o papel predominante do inconsciente em processos psíquicos, revelando que nosso eu, não manda nem mesmo na própria casa.
Dessa forma, Freud, com sua nova ciência, chega deslocando o eixo do homem em relação a ele próprio, trazendo à tona verdades que abalaram profundamente a sociedade, verdades estas que causaram um imenso desconforto. E nada é mais desconfortável do que quando nossas certezas inabaláveis são abaladas.
É neste contexto que a Psicanálise constrói seus alicerces, no desconforto, no tudo que a pessoa acredita que é a sua certeza e de repente passa a perceber que essas certezas não vêm a ser na desconstrução dos egos, e isso não é uma imposição dita diretamente pelo analista. Muito pelo contrário, é o próprio analisando que, quando investigado e questionado de maneira correta, passa a enxergar suas pssíveis verdades. Certamente, para que isto ocorra, não existe uma pílula milagrosa que a pessoa tome e no dia seguinte ela esteja curada e apta para viver sua vida tranquilamente.
A Psicanálise é um processo de vida, é um olhar profundo para si mesmo, é um questionar-se diariamente, é um questionamento do mundo a todo momento.
E é nesse momento que uma outra ciência, existente desde a Grécia antiga, une-se perfeitamente com a Psicanálise. Esta ciência é Filosofia.
Desde os tempos mais remotos existem questionamentos inerentes ao ser humano, e a Filosofia, por meio de grandes pensadores, tornou-se uma referência e uma importante ferramenta na construção de possíveis verdades, de possíveis conceitos relacionados à essência humana.
Dentro desta linha de raciocínio, somos incumbidos de trazer à baila o filósofo, psicólogo e antropólogo francês, Michel Foucault.
Quando falamos em Foucault, falamos de uma pessoa que conseguiu, dentre tantas intempéries pessoais, ser um “arqueólogo do conhecimento” e, os pontos que movimentam toda sua construção literária estão relacionados à saúde mental, à loucura, ao papel preponderante do poder no ser humano e uma forte crítica aos moldes de encarceramento.
Mas, para entendermos um pouquinho mais o pensamento de Michel Foucault, devemos entender sua vida pessoal e o que o levou a ser quem é na história da filosofia e da antropologia moderna.
Michel Foucault nasce em 15/10/1926 em Poitiers, França. Filho de Paul Foucault, um importante cirurgião, que não só acreditava que o filho seguiria seus passos na medicina como impunha isso a ele. Entretanto, os planos de Michel Foucault eram outros, gerando assim um relacionamento extremamente conturbado e abusivo emocionalmente.
Outro ponto de afetação nesta relação pai e filho, era a homossexualidade de Foucault, onde o próprio filósofo descreveu que seu pai o via como um delinquente. Nesta época, a homossexualidade era crime passível de prisão em muitos países europeus.
Em 1948, não aguentando a pressão emocional, Michel Foucault tenta o suicídio e é internado pelo pai em um hospital psiquiátrico. Neste local tem uma breve estadia, mas suficiente para que começasse a conjecturar sobre a loucura e o modo de tratamento aplicado nestes locais.
Assim, caro leitor, percebemos um possível fio da meada da construção e o molde de todo o pensamento foucaultiano. A ele foi imposto o exílio à outra margem da sociedade, a margem da marginalidade e do encarceramento, mas não por ser patológicamente louco, e sim por ser diferente, por agir diferente dos moldes que a sociedade de sua época impunha.
A partir deste momento todo o seu discurso é voltado para o desvio, a sexualidade, a loucura e os mecanismos de poder.
Foucault, diferente de outros acadêmicos de sua época, estudava “in loco” a sociedade e os problemas que a afetavam. Assim como Sócrates, Foucault desceu à Ágora (praça), e juntou-se aos movimentos da vida, da cidade e do mundo e dessa forma conseguia ler as pessoas e seus sentimentos frente às adversidades.
Em 1953, Foucault escreve o livro “Doença mental e Psicologia”, considerado um texto revolucionário dentro da Psicologia, no qual ele propõe “novas formas de se conceber a doença mental traçando paralelos entre a história, a cultura e a sociedade contemporânea”.
Pouco antes de escrever este livro, no ano de 1951, o filósofo francês teve contado com as ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, fato este que teve um forte impacto em seu pensamento.
Nietzsche, antes de ser o conhecido filósofo que é, era Filólogo e professor catedrático da Universidade suíça da Basiléia, e todo seu processo de escrita é baseado na “genealogia”, ou seja, baseado na busca pela essência das coisas, onde o fato, em si, tem início. Um exemplo disso é quando ele escreve o livro “Genealogia da Moral”, onde faz uma profunda pesquisa crítica, desde o princípio dos tempos, sobre quando a moral foi estabelecida como lei na sociedade.
Foucault, por sua vez, adere a esta prática e posteriormente, em 1961, escreve sua tese de doutorado na Sorbone, que tem por título “A História da Loucura na Era Clássica” e que se torna um de seus mais célebres e importantes livros.
Neste livro, Foucault elabora uma forma de “arqueogenealogia” da loucura na sociedade no último milênio. Sua análise tem início no Séc. XIII e se estende até o final do Séc. XIX. Dentro dessa análise o filósofo traz à tona os vários papéis que a loucura desenvolveu ao longo da história e o quanto ela foi usada como ferramenta de poder, dentro da moral vigente de cada época. Ele nos mostra que na Baixa Idade Média e início do Renascimento a figura do “louco” era romanceada, usada como artifício das artes e até mesmo como os conhecidos “bobos da corte”, ou seja, a moral vigente da época usava a figura do louco como uma forma de entretenimento das côrtes.
Quando inicia a transição entre o Renascimento e o Iluminismo, a figura do louco se transforma, tornando-se uma ferramenta de “limpeza” da sociedade. É nesta época que surge o que ficou conhecido como “o grande internamento europeu”, onde a figura do louco agora estava associada a prostitutas, mendigos, alcoólatras, homossexuais, filhos pródigos e assassinos. Assim, todas essas pessoas foram intituladas “loucas” e internadas em antigos leprosários que há séculos estavam fechados e foram reabertos com a criação do Hospital Geral de Paris, no início do Séc. XVII, e que centralizava essa espécie de hospitais que, na verdade, tratava-se de grandes “presídios”, onde as pessoas lá internadas não recebiam nenhuma espécie de cuidados médicos e viviam de forma sub-humana, tratados na maioria das vezes, pior que animais.
Foucault, em sua arqueologia unida à genealogia, nos mostra o quanto a moral instituída em cada época tem papel predominante na tomada de decisões. O grande internamento foi na verdade uma ferramenta usada por parte dos três poderes dominantes à época, Monarquia, Clero e Burguesia, que tinham em comum o molde Iluminista de criar uma sociedade livre dos “problemas sociais” mirando apenas o alcance de tudo que era racional, de tudo que era perfeito frente aos olhos de quem regia os códigos morais.
Desta forma a Igreja teve como aprisionar “os mais necessitados”, fazendo crer que ela era caridosa com os pobres, dando-os teto e alimento. Assim, os necessitados “não estariam mais nas ruas praticando mendicância. Logo, a sociedade, que via as ruas “limpas” dessas pessoas, acreditava ou fazia de conta que a Igreja era perfeita dentro do cumprimento de seu papel social. No âmbito econômico, a Burguesia passou a lucrar muito ao ter mão de obra escrava na indústria têxtil e outros afins, pois dentro de alguns destes ‘hospitais” o “ócio” não era aceito, como no caso da Alemanha e da Inglaterra. Já no âmbito político, o internamento representava a “paz social”, pois o grande problema sem solução estava trancafiado a sete chaves. Logo sua política teria alcançado a perfeição.
Ledo e infeliz engano.
Ao tratarmos a problemática da moral, devemos nos ater por um momento à etimologia do que é Moral, Moralidade e Moralismo. Percebemos que é de vital importância entendermos e contextualizarmos tais conceitos, pois são eles que regem o enquadramento do sujeito na sociedade.
Vejamos então:
Moral: a moral é um conjunto de regras, costumes e formas de pensar de um grupo social, que define o que devemos fazer ou não em sociedade. O termo moral tem origem no latim morales, cujo significado é ‘relativo aos costumes’”.
Moralidade: é um conjunto de princípios individuais ou coletivos. Tem a ver com o bem, com o bom convívio social. É julgar, pelos seus princípios, se uma coisa é certa ou não para você. Moralidade não tem nada a ver com os outros. Não é uma maneira de julgar a vida alheia segundo seus próprios parâmetros.
Moralismo: [Filosofia] Religião. Doutrina que afirma ser a moral um valor universal e necessário para a percepção da realidade, em detrimento dos demais valores. [Por extensão] Ação de manifestar, através das palavras e/ou ação, uma preocupação demasiada com questões de teor moral, geralmente mostrando juízo de valor ou preconceito para com os demais;
Considerando essas diferenças entre Moral, Moralidade e Moralismo, fica evidente que o moralismo é um problema que nos parece muitas vezes intransponível, pois está incutido na mente das pessoas. Ele é uma pústula que assola a sociedade ocidental há séculos e tornou-se preponderante na atualidade, pois no momento histórico no qual estamos inseridos, este fator está a tornar-se patológico, gerando distúrbios psicológicos e comportamentais nos indivíduos.
Nesse ponto retornamos à Psicanálise por percebemos o quanto a moral Iluminista nos legou um grande problema. Este problema é o medo que as pessoas têm quando o assunto é saúde mental. É como se, com o passar do tempo, foi forjada a ideia de que se o sujeito procurar ajuda quando não está bem mentalmente, ele será internado e expurgado da sociedade.
Atualmente as campanhas de conscientização a respeito de saúde mental estão por toda parte e nós, enquanto psicanalistas, sentimos na pele a dificuldade em tratar desse assunto com pessoas leigas. Nosso grande trabalho está em desmistificar este tema para que, dessa forma, consigamos nos aproximar do maior número de pessoas possível, auxiliando-os em suas dores emocionais.
Assim sendo, espero que você, que está lendo este artigo, entenda a importância de unirmos Filosofia, Psicanálise, Antropologia e tantas outras ciências que forem necessárias para assim formarmos um forte arcabouço mental. Precisamos compreender profundamente a sociedade em que vivemos, os variados problemas e questionamentos que assolaram a humanidade e que, infelizmente, ainda hoje recaem sobre nós.