quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Foucault e Loucura

Muito se tem falado sobre o tema "Saúde Mental". Enquanto psicanalista, minha missão é auxiliar as pessoas que me procuram, de forma que elas iniciem o processo de análise pessoal e compreendam o que as faz mal, o que as incomoda. Tendo noção disso, a pessoa entra no processo de reestruturação de pensamentos e atitudes. Percebam aqui que a palavra chave é "processo". Para alguns esse processo é mais lento e para outros mais longo. Porque cada ser humano tem seu tempo próprio de amadurecimento e de ter a tão necessária noção se si como algo relevante.

É certo que hoje, em pleno século XXI, os meios para entender e tratar a saúde mental mostram-se eficazes em sua causa maior. Contudo, nosso século, mesmo sendo o de maior acesso à informação por meio da popularização da internet, acaba por trazer muita desinformação em uma área em que já existem tabus por demais, estigmas demais e o próprio medo de levantar este tema.

Pois bem, ao falarmos sobre saúde mental, ao menos do ponto de vista filosófico ou sociológico, é imprescindível falarmos de Michel Foucault.

Foucault é considerado uma das mentes mais brilhantes do século XX. A seu respeito trarei dois comentários relevantes para que vc leitor que pode ainda não conhecer Foucault tenha uma ideia de seu trabalho:

"Michel Foucault foi um intelectual que exerceu uma ação e influência

consideráveis em vários ramos do saber: na filosofia, na psiquiatria,

na psicologia, na história, na sociologia, na antropologia, nas artes e na política.

Teve uma trajetória acadêmica brilhante e uma atuação militante

política expressiva. Foi uma das cabeças mais lúcidas que nosso século passado produziu".

Oswaldo Giacoia Junior

{...}

"O que o estimula, o que o move é pensar diferentemente, é pensar de outro modo

[…] Só alguém com uma grande liberdade de pensamento pode trazer

temas novos na contramão de seu tempo".

Margareth Rago

Herdeiro declarado de Nietzsche, Foucault usa o método genealógico do filósofo alemão com a intenção de alcançar um entendimento a cerca de temáticas fortes e incômodas, fora da caixa, fora do que já foi dito, fora do que já estava estabelecido como verdade absoluta.

Em sua tese de doutorado na Sorbone, sob o tema "Loucura e Desrazão", que logo depois virou um livro intitulado "História da Loucura na Era Clássica", ele escreve o que considero o maior e mais profundo trabalho a respeito da loucura.

Foucault realiza o que ficou conhecida como uma pesquisa "arqueogenealógica", ou seja, ele usa o método genealógico unido ao arqueológico para entender a estrutura de como a loucura foi entendida desde o século XIII até meados do século XX. Tratamos aqui de um trabalho audacioso, que nos traz uma visão clara de como a loucura foi encarada de formas variadas que se adequavam à moral vigente de cada época. 

O ponto que acredito ser o mais absurdo foi o que ficou conhecido como "O Grande Internamento". Como fator histórico é difícil compreender porque este acontecimento foi silenciado, mas Foucault viu justamente aí um fundamento muito forte e que tem sua conexão com os dias atuais e mais à frente ficará mais claro.

O grande internamento aconteceu entre o início do século XVII até meados do século XIX. Lembrem aqui que o século XVII foi marcado pelo Iluminismo com Descartes como o grande porta voz da razão. Como a razão passou a ser a mãe de toda a perfeição almejada pelo ser, tudo o que fugisse disso deveria ser retirado da sociedade. É nesse ponto que Estado e Clero decretam que todas as pessoas que fugiam do padrão deveriam ser consideradas loucas e internadas. 

Quem eram essas pessoas que deveriam ser internadas? Todas as pessoas consideradas um problema para a sociedade, ou seja, mendigos e seus filhos, prostitutas, homessexuais, filhos pródigos que dilapidavam suas heranças, mulheres que não se sujeitavam a seus maridos, alcoólatras, militantes políticos, mães solteiras. Quem decidia que a pessoa deveria ser internada não era um médico, mas um juíz.

Essas pessoas passaram a ser encaminhadas para os antigos leprosários, condenadas a uma forma de prisão perpétua cujo crime cometido era o de existirem. E aí percemos que a "loucura" foi usada como nome para todas as pessoas que eram consideradas um problema para a sociedade. Assim, com a "limpeza das ruas", a aristrocracia tinha acesso à ruas limpas, sem mendigos, passando a impressão de que o Estado estava cuidando dessas pessoas e de que a Igreja estava cuidando dos desvalidos.

Para vocês terem uma ideia, o grande internamento chegou ao Brasil. Sim, em nosso país. Chegou aqui bem atrasado, já no início do século XX, quando na Europa já havia sido abolido. Dentre várias intituições, a que foi considerada a pior em todos os setores foi o Hospital Colônia de Barbacena, que foi considerado pelo médico italiano Franco Baságlia uma forma de campo de concentração nazista devido ao trato com seus internos. Parece absurdo, mas esta instituição só foi fechada completamente em 1990 com a reforma psiquiátrica que houve no Brasil.

Foucault traz à tona que na verdade não estávamos falando de loucos ou de hospitais psiquiátricos mas sim de grandes presídios. No caso da Europa, o fim desse ciclo deu-se no início do século XIX, quando Philippe Pinel, um psiquiatra, começa a visitar esses locais e a denunciar os maus tratos. E a mostrar que a grande maioria que encontrava-se nesses locais não era de loucos, mas sim pessoas que viviam à margem da sociedade.

Assim, Foucault define três momentos que definem a loucura através do último milênio:

{...}

 "Indiferenciação (séculos XV e XVI), onde não havia distinção

 entre loucura e saber, o louco era um estranho que peregrinava livremente;

a Segregação (séculos XVII e XVIII), onde a loucura passa a ser

excluída da razão e enclausurada, apesar de não muito bem percebida;

 e a Medicalização (séculos XIX e XX), quando a loucura começa a ser

entendida como “doença mental”, se tornando objeto médico e de tratamento."

(Curso Fenomenologia e Psicologia - Ex-isto)

Para Foucault, a loucura no Renascimento era aceita como algo livre, tratada como algo digno de arte, como Jerónimo Bosch bem expessou em suas pinturas no século XV. Quando o Iluminismo toma conta do cenário e a razão torna-se a chave mestra da evolução humana, a loucura é vista como desrazão e todas as pessoas que eram consideradas o problema da sociedade foram tiradas de circulação e expostas às piores formas de tortura, por não serem adequadas ao momento. Só no século XIX é que a loucura passa a ser encarada como caso clínico, digno de pesquisa e tratamento adequado.

Analisando todo esse cenário, percebemos que os estigmas a cerca da loucura tiveram suas raízes plantadas em solo fértil e esse descaso perdura até os dias atuais. 

O medo ao tratar desse tema nos remete ao aprisionamento e principalmente ao estigma de tornar-se um pária da sociedade, já que as pessoas passam a ter medo de pessoas assim.

Contudo, os tratamentos estão muito avançados nessa área e pessoas podem ser tratadas com remédio e terapia. E quando não, ao menos encontrarmos locais adequados para que essas pessoas tenham o cuidado necessário. 

Estou ciente de que a humanidade ainda tem um longo caminho no estudo da loucura como a entendemos e percebemos hoje, mas entender como ela foi trabalhada através dos últimos séculos nos traz uma compreensão de que nem o Estado, nem a Igreja ou a Política devem passar perto do tema com seus preceitos morais e de "limpeza da sociedade". 

Pessoas que vivem à margem da sociedade sempre existiram e sempre existirão, mas o que não pode ser aceito é que simplesmente por estarem no local em que estão, possam ser usadas como uma espécie de sujeira e que quando melhor aprouver sejam jogadas para baixo do tapete.

A grande luta de Foucault, que percebemos por toda sua obra, é em nome dessas pessoas que margeiam nossa sociedade. As instituições psiquiátricas e os presídios sempre foram o foco modal deste filósofo.

Em seu livro "Doença Mental e Psicologia", Foucault afirma que:

“Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura,

 já que é esta que detém a verdade da psicologia.”

Percebemos que a visão do filósofo está muito mais próxima do entendimento da loucura como era vista no Renascimento, mas este é um tema para um outro artigo.

Quem quiser saber mais a respeito de Foucault, seu pensamento e sua obra indico a página "Colunas Tortas", de Vinicius Siqueira. Esta página é um oásis para quem busca o entendimento do pensamento deste filósofo francês que, assim como Nietzsche, foi muito além de seu tempo em sua crítica à sociedade.

Até breve!

Um comentário:

  1. Imagina o ser humano descobrindo que somos todos loucos!! Temos que tratar outras patologias pois a loucura nos é vital!!

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