quarta-feira, 23 de agosto de 2023

"Eu sou vários"

"Eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e correrei os riscos de estarmos juntos no mesmo plano. Desde logo, evite ilusões: também tenho um lado mau, ruim, que tento manter preso e que quando se solta me envergonha. Não sou santo, nem exemplo, infelizmente. Entre tantos, um dia me descubro, um dia serei eu mesmo, definitivamente. Como já foi dito: ouse conquistar a ti mesmo".

Há muitos anos este pensamento anda comigo. Ele expressa toda a pluridade do ser humano, com seus altos e baixos, angustias e alegrias e o próprio reconhecimento de que temos um lado mau e que em alguns casos nos envergonham. 

Por muitos anos acreditei que esta máxima teria sido escrita por Nietzsche. Entrtando, neste tempo que dedico à pesquisa dos ecritos de Nietzsche, numca encontrei esta passagem.

Procurei por muito tempo, e só agora percebí que estava às voltas no local errado. Acabei descobrindo sem querer ao assistir um vídeo da filósofa brasileira Scarlett Marton, cujo tema tratado era "Niilismos". 

Pois bem, quem escreveu esta máxima foi o escritor português Fernando Pessoa por meio de seu heterônimo "Ricardo Reis". 

É muito interessante perceber Fernando Pessoa aos olhos da Psicanálise, pois ele criou seus heterônimos e cada um tinha personalidade própria, inclusive com data de nascimento  e de morte. Mas não para por aí. 

"Por exemplo, consta que Ricardo Reis nasceu em Porto, Portugal, no dia 19 de setembro de 1887. Estudou em colégio de jesuítas e formou-se em medicina. Ricardo Reis era monarquista e exilou-se no Brasil, em 1919, por discordar da Proclamação da República Portuguesa. Foi profundo admirador da cultura clássica, tendo estudado latim, grego e mitologia. Sóbrio e claro, sustenta a convicção de que o  único caminho a se tomar na vida é o de afrontar a sorte com o silêncio.

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A ideia desenvolvida em sua obra faz parte do pensamento Greco-romano: clareza, equilíbrio, as boas formas de viver, o prazer e a serenidade. Além do epicurismo, Ricardo Reis possuía o estoicismo também como influência, que propõe a aceitação do acontecimento das coisas e a rejeição às emoções e sentimentos exacerbados".

Um ponto interessante é que na biografia de Fernando Pessoa não é localizada a data da morte de Ricardo Reis. Mas o escritor brasileiro José Saramago em seu livro "A morte de Ricardo Reis" a situa em 1936.

Às vezes, quando penso em Fernando Pessoa, algo me liga ao filme "Fragmentado". Neste filme o personagem principal, Kevin (James McAvoy), possui 23 personalidades distintas. No caso do filme, Kevin tem o que a medicina chama de Transtorno dissociativo de personalidade. Este transtorno apresenta incapacidade de recordar eventos diários, informações pessoais importantes ou eventos traumáticos ou estressantes, todo os quais tipicamente não seriam normalmente perdidos com o esquecimento normal. A causa é quase invariavelmente trauma opressivo na infância. Mas está é uma área que a Psicanálise não pode atuar. 

Em essência a Psicanálise, ou melhor, seu método terapeutico age por meio de lembranças trazidas à tona, ou seja, um processo investigativo onde a lucidez das lembranças constroem um panorama e a partir daí o processo é estartado. Por esse motivo não temos objeto de estudo com uma pessoa com transtorno dissociativo de personalidade. 

Voltando a Fernando Pessoa, não acredito que ele tivesse esse transtorno. Acredito sim que ele foi um escritor genial, com um modo de pensar múltiplo, típico dos pensadores de sua época. 

Fernando Pessoa construiu 25 heterônimos, que são: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora, Charles James Search, Alexander Search, António Seabra, Barão de Teive, Bernardo Soares, Carlos Otto, Charles Robert Anon, Coelho Pacheco, Faustino Antunes, Frederico Reis, Frederick Wyatt, Henry More, I. I. Crosse, Jean Seul, Joaquim Moura Costa, Maria José, Pantaleão, Pêro Botelho, Raphael Baldaya, Thomas Crosse e Vicente Guedes.

Assim, só um mestre na escrita como Fernando Pessoa, para construir heterônimos tão únicos.

Mais um mito desfeito, e dessa vez foi extremamente positivo pois pude ter o prazer em iniciar meu mergulho nas obras de Fernando Pessoa, e ele sim, foi vários!

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