sexta-feira, 23 de outubro de 2020

176 anos do nascimento de Nietzsche

Em maio de 2017. meu marido e eu fomos a um show do Ney Matogrosso no Teatro Guaíra em Curitiba. Foi um show simplesmente maravilhoso e inesquecível.

 Um ponto que me chamou muito a atenção  foi que o Ney, além de sua presença única no palco em nenhum momento fala com o público, ele interpreta suas músicas para ele como se estivesse em uma forma de êxtase... nunca na vida havia visto algo assim... Talvez por este motivo o público o ama e vai ao delírio com sua desenvoltura no alto de seus 75 anos.

Entendi neste momento que a arte real em geral é assim. quem a faz, seja escrevendo, pintando, cantando, produz o melhor de si e como consequência, se tiver alguém que goste daquilo, é sucesso , é arte... Assim o foi para escritores, pintores, filósofos e tantos outros. 

Dito isto... Em 15 de outubro de 1844 nascia Friedrich Wilhelm Nietzsche, sim, nosso filósofo que não se dizia um homem e sim uma dinamite.


Digo "nosso" pois por estudá-lo anos a fio ele acabou se tornando meio que parte de mim e acredito que tem o mesmo significado para quem acompanha meu blog e também para quem o estuda com afinco.

Portanto, a forma como Nietzsche desenvolveu seu trabalho é como o que vi no show do Ney. Um trabalho para si mesmo, sem a pretensão de acumular um vasto público, apenas os que o compreendam, no entanto, é exatamente isso que os faz ter um público tão grande e apaixonado por seus trabalhos. 

Claro, puxo a sardinha para o meu lado aqui pois sou fã do Ney Matogrosso e encontrei nele um ótimo exemplo comparativo a minha outra paixão que é Nietzsche.

Dando continuidade ao tema, Nietzsche, por meio de seu trabalho filosófico, conseguiu "bagunçar" o panteão filosófico moderno do século XIX que era e continua sendo regido pela tríade grega Aristóteles,  Sócrates e Platão.  Digo isso pois o pensamento Ocidental é regido por esta tríade e duvido muito que isso mude tão cedo.

Como disse Viviane Mosé certa vez em uma palestra, Nietzsche criou uma maquina de guerra contra o pensamento socrático platônico. Toda essa máquina de guerra era voltada para o esquema mental que moldou todo o pensamento Ocidental. 

Essa crítica mordaz à Sócrates faz sentido, quer dizer, faz todo sentido. Talvez hoje, examinamos isso com uma frieza maior  e vemos um certo exagero nas palavras de Nietzsche, mas não é.

Vou tentar aqui, de forma relativamente simples, traçar uma linha de raciocínio que faça sentido.

Vamos lá, neste ponto devemos trazer à tona dois grandes filósofos cristãos católicos. São  eles Agostinho de Hipona e Tomas de Aquino.

Tentarei ser breve, mas aqui, sinto a imensa necessidade de não o ser pois o assunto é longo.

Vamos lá...

Agostinho de Hipona deu início, ou seja, foi o preceptor da filosofia cristã. Neste momento, séc. IV, o cristianismo estava em processo de criação de seus alicerces e precisava de uma base filosófica para ser acreditado. 

A fé, como a conhecemos atualmente, estava longe de ser o que é,  pois o pensamento grego, racional, era o que imperava no mundo antigo. Para acreditar em algo, mesmo que divino, existia a necessidade de  uma base racional, filosófica para que imperasse.

Agostinho de Ipona, antes, muito antes de ser o santo da Igreja Católica, era um "homem do mundo", como usualmente os cristãos fervorosos chamam quem não segue as leis divinas ao pé da letra. Sua mãe, conhecida atualmente como Santa Mônica, lutava incansavelmente para que seu filho abandonasse o vício do álcool e seguisse uma vida "santa".

Esse dia chegou.

Entretanto, Agostinho não abandonou alguns de seus hábitos. Um deles, no meu entendimento o mais importante, valioso e perigoso,  foi o de pensar livremente. Assim sendo, Agostinho pegou sua base Helenista e a transmutou para o Cristianismo.

Neste momento, perdoem-me  os leitores mais retóricos, a bosta estava feita. 

Agostinho cristianizou o pensamento socrático que ja destoava totalmente de seu tempo

Abre-se aqui um parêntese em relação a Sócrates. 

O filósofo era conhecido, em seu tempo, como um "rebelde revolucionário" contra as ideias que imperavam naquele momento. Não à toa, foi condenado a morte por cicuta.

Assim sendo, Agostinho eternizou a máxima que rege o Cristianismo até os tempos atuais de que a vida é um erro, de que todo desejo carnal é pecado e que só o pós mortem é a verdadeira razão da vida. Começa aqui a negação do corpo e dos desejos.

Penso eu, que ainda assim, neste momento, Agostinho poderia ter pego como base os "Estoicos", um grupo filosófico muito mais condizente com o que a Igreja queria como alicerce. Entretanto, os "Estoicos" não eram "descolados", os que poderiam pegar no pensamento como musica chiclete, usual em nossos tempos no carnaval. O descolado mesmo era seguir o pensamento de Sócrates.

E não é que deu certo? Tão certo que até hoje ouvimos essa mesma música chiclete. E olha que de lá pra cá já se vão quase dois mil anos. 

Muitos séculos depois, com o Cristianismo já estabelecido mas apresentando pontos de conflito, entra em cena Tomás de Aquino.

Posso resumir de forma fugaz que Tomás de Aquino é o filósofo cristão que teve como principal meta reafirmar a postura da Igreja a ponto de determinar que a Igreja Católica Apostólica Romana era a representante de Deus na terra. Ou seja, ele reafirmou o poder da Igreja acima do bem e do mal, todos os atos da igreja deveriam ser aceitos pois era o que Deus queria.

Nada mais prático do que usar a máxima de que tudo é feito porque Deus quer, pois ele não vai se pronunciar nem a favor nem contra mesmo...

Agora, revendo isso, podemos voltar para Nietzsche.

Nietzsche é filho e neto de pastores Luteranos. Desse modo, nosso filósofo teve total acesso à teoria e a pratica dos dogmas cristãos. A partir disso, toda sua repulsa ao cristianismo estava explicada.

Por esse motivo, Nietzsche bombardeia nosso esquema mental, indo lá no âmago do problema, mostrando ponto a ponto os erros impostos como verdades absolutas.

Tudo isso seria relativamente normal em 2020, mas por volta de 1875, isso foi uma bomba letal. Ninguém ate o momento teve a ousadia de questionar o pensamento cristão. 

Mesmo assim, Nietzsche o fez sem medo. Pagou pra ver. 

Pouquíssimos o entenderam e lhe deram apoio.

Mesmo assim o respeitaram pois Nietzsche foi o professor mais novo da história da Universidade da Basileia a ter uma cátedra. Conquistou isso aos vinte e quatro anos de idade, fato inédito até então, sendo que a fundação desta instituição data do ano de 1460.

Mesmo assim, com todos os louros da glória com este posto, Nietzsche não dobrou-se ao sistema. Explanou suas ideias sem medo ou pudor... Sua verdade estava no mundo Helênico pois para Nietzsche tudo produzido depois disso era um erro.

Dessa forma, com o tempo, Nietzsche percebeu que esse caminho acadêmico não mais o pertencia, passando assim, a ser o nosso "filósofo andante e errante" como o conhecemos. 

Expatriado, sem rumo, sem lenço e sem documento. Apenas suas palavras eram seu norte.

Nascia assim o Nietzsche que foi imortalizado pelo tempo...

Ah o tempo...  como sempre o tempo coloca tudo em seu lugar...

Com o tempo, as mentiras criadas por sua irmã, Elisabeth, foram desfeitas... De certa forma Nietzsche foi dissociado do Nazismo, mesmo tendo sido citado no Tribunal de Nuremberg como o ideólogo do Nazismo.

Assim sendo, tem como não amar o tempo quando o compreendemos?

Quando estamos no meio do turbilhão e envolvidos pela emoção, não temos aporte para compreendê-lo... mas depois, percebemos que tudo acontece como deve ser.

Talvez por isso Nietzsche percebeu que era um homem póstumo, um filósofo póstumo  e que só as gerações futuras o entenderiam...

Cá estamos nós, em outubro de 2020, o ano mais turbulento de minha vida pois nunca tinha tido o pesadelo de passar por uma pandemia... mesmo assim sobrevivemos e continuamos pensando, lendo e relendo textos antigos e tentando achar razão para essa nossa vida tão vulnerável e ao mesmo tempo tão forte...

A filosofia se mostra para mim como uma forma de não morrer de marasmo... De não achar que a vida se resume em pagar boleto, rir de memes na internet ou de acabar-se no supermercado...

Brindemos então, o aniversário de Nietzsche, convidando Dionisio à nossa mesa, e deixemos nos embriagar  com as ideias, com a alegria do conhecimento e dar vazão para essa fome que nos consome  até o surgimento da aurora... quando os passarinhos começarem a cantar e o sol a nascer... nos indicando que é hora do descanso... 

Descanso necessário para mentes que pensam, que sonham, que se elevam além, muito alem de seu tempo... Esses somos nós, crias do pensamento de Nietzsche... 

Até breve...

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Estratégia para ler Nietzsche II


Há dois anos atrás, quando escrevi o artigo Estratégia para ler Nietzsche, não imaginava que teria a aceitação que teve de meu público.

De lá para cá, várias questões me foram levantadas a respeito dessa estratégia mental que formei para melhor compreender este filósofo tão controverso e tão mal compreendido da filosofia moderna.

Assim sendo, quando o tema é filosofia, quanto mais nos aprofundamos maiores são os questionamentos que nos envolvem e raras são as respostas.  E em Nietzsche essa proporção ganha uma escala imensa pois para tentar compreendê-lo precisamos desbravar caminhos tortuosos, e neste ponto é necessário ter um norte fixo em mente para não nos perdermos.

É preciso traçar um plano de vôo preciso. Digo isso pois pesquisei, a princípio, quais eram as leituras de cabeceira de Nietzsche, bem como seus filósofos preferidos assim como os que ele citava como desprezíveis, sendo Sócrates, sim o grego aclamado pela sociedade Ocidental, um deles. Sem falar em Immanuel Kant.

Mas não pense você que apenas por Nietzsche rechaçar esses filósofos não precisamos ter contato com seus trabalhos, pelo contrário, são estes trabalhos que nos fazem entender a mente inquisidora de Nietzsche, que levanta pontos que passam batido numa leitura rasa e sem compreensão.

Seguindo esse caminho um ponto se faz necessário. Deve-se buscar um entendimento profundo do que foi o Helenismo Grego e os seus reflexos. Por este motivo Nietzsche chega a afirmar que a verdadeira filosofia está no mundo pré socrático. 

Assim sendo, é preciso de um trato muito grande em relação ao pensamento nietzschiano. Não podemos ser rasos ao ler Nietzsche. Precisamos ir além de suas palavras.

Não podemos ler Nietzsche apenas em busca de uma forma de auto ajuda ou ate mesmo como uma simples meta de achar solução para seus problemas pessoais. Nietzsche não é a auto ajuda que conhecemos atualmente. Ele usa o martelo, ou melhor, a marreta para nos levar para uma coisa muito maior e dinamitar nossa razão socrática , ou seja, nos atenta para a tentativa do entendimento do que é o ser humano.  E essa, meus caros, é uma explicação que atormenta o ser humano desde os tempos mais remotos.

Acredito, que neste momento,  meus leitores podem perceber que o trato necessário para ter contato com Nietzsche é trabalhoso. Trabalhoso, porém  necessário para encontrarmos o verdadeiro Nietzsche. 

O Nietzsche que anseia e que expressa em seus escritos uma forma diferente de ver o mundo sem as amarras do molde socático-platônico-cristão. Um exemplo claro disso é Zaratustra. Onde ele fala que só o amanhã  a ele pertence.  Na esperança que gerações futuras venham a ter a sensibilidade para entender o que ele quis dizer.

Por este motivo, não podemos nos deter a ler os livros mais comentados de Nietzsche. Isso nos afastaria dele. Devemso conter nosso apetite e ler Zaratustra e O Anticristo depois de adentrar o universo de Nietzsche, só assim teremos olhos e ouvidos para entender o que ele quis nos mostrar. Pois são leituras que nos chocam. São leituras muito fortes para pessoas que não estão previamente preparadas para o que ele quer nos mostrar.

Não afirmo aqui que sou totalmente favorável a tudo que Nietzsche nos coloca, tenho meus pontos sensíveis, valores com os quais fui criada e que pesam... Mas Nietzsche trata disso de forma necessária, porém, quando minha digestão mental vai além... dou um tempo e quando estou pronta, volto.

Não pensem que em dezesseis anos de estudo em Nietzsche eu não briguei com ele... já cheguei a falar que nunca mais falaria com ele... Mas como toda paixão tem seus arroubos, e momentos de questionamentos... mesmo assim voltei ainda mais apaixonada... porém como já disse anteriormente em outro artigo, minha paixão virou amor e as coisas estão mais calmas... 

Entretanto, percebo que as pessoas mundo a fora amam Nietzsche por seus aforismas, mesmo que em sua maioria mostrem-se apenas como frases de efeito que fazem sentido apenas naquele momento, mas que fazem sentido de alguma forma.

Nietzsche tem esse poder de chamar a atenção de leigos, entretanto, para continuar a tê-lo como mentor é preciso muito trabalho e é aí que muitos desistem.  É só quem tem olhos, ouvidos e vontade de pesquisar e persistir nesse caminho para encontra-lo, realmente dá início a essa caminhada sem fim.

Assim se faz essa vida caminhante da filosofia. Uma caminhada sem fim mas para quem acha seu norte é um caminho apaixonante e com tantos questionamentos que faltam vidas para chegarmos onde realmente queremos. 

Por isso leitor, embarque nessa viagem.  Garanto que vc não se arrependerá de adquirir conhecimentos e valores que vão muito além do que nossa sociedade atual medíocre nos ensina e que nos fazem apenas ruminar valores perdidos e sem sentido.

Até breve!!!